23. Auschwitz II - Birkenau

Não dormi mal, o Miguel parece que também não e nem o Rui se queixou do seu cochicho improvisado. Recorde-se que ele tinha improvisado uma cama a partir de umas almofadas para resolver o problema de duas camas para três homens.

O quartinho - Namestovo, Eslováquia

Estava um dia radioso lá fora, com um ventinho fresco agradável. Descemos até ao salão para o pequeno-almoço, estava a matriarca a gerir a sala. Pequeno-almoço banal tipo buffet com tostas, queijo, carnes frias e uns bolos. Do interior via-se um campo de ténis mesmo em frente à casa.



Fiquei com a impressão que esta região estava mais focada para o turismo interno. Pagámos a estadia e fomos lá acima buscar as bagagens. Ainda antes de arrancar descemos até à beira do lago.

Até ao lago - Namestovo, Eslováquia

Havia ali um pequeno ancoradouro de serventia à casa. Era cedinho e já se viam um ou dois pescadores de cana armada. Muito simpático este local... Mas há que rumar a Norte.



De maneira que regressámos à estrada, continuando em direcção à Polónia. Passámos mais uma vez a ponte sobre o lago e do outro lado circundámos Namestovo para seguir em direcção à fronteira. Tirando aquele bocadinho giro à beira de água, parecia em tudo uma cidade industrial.

Mais campo, mais umas aldeias e ao cabo de uns quilómetros começámos a subir em direcção a uma floresta densa. Não que o cenário não estivesse agradável, mas estava a ficar ainda melhor! A estrada um pouco mais sinuosa também, estávamos a chegar à fronteira… A ver se nesta dava para tirar uma foto. Não demorou muito a chegarmos ao cimo e lá estava ela à nossa espera. Desta vez a foto não escapou! Tirámos umas belas chapas no local que marca o fim da Eslováquia e o começo da Polónia. Curiosamente, também aqui, zero controlo policial.



Na fronteira - Eslováquia/Polónia

Começava o tempo a aquecer e aproveitámos também para aliviar algum agasalho. Daqui em diante e até chegarmos a Auschwitz, sinceramente não me recordo de grandes paisagens. Ou que pelo menos que me tenham ficado na memória. Recordo-me de passar por várias aldeias, algumas mais rurais que outras. Mesmo as paisagens campestres são banais, nada que encha a vista.

Tivemos dois imprevistos no caminho: o primeiro fruto da lerdeza do GPS que teimava nos enviar por um matagal. Deixámo-lo a falar sozinho e seguimos em frente, mas foram preciso uns quantos quilómetros para o dito largar a teima; o segundo imprevisto, já próximo de Auschwitz, numa espécie de nacional estava tudo parado na sequência de um acidente. Aqui o GPS redimiu-se, e encontrou-nos um caminho por fora.

O tempo durante a manhã tinha estado muito quente. À medida que nos íamos aproximando do destino também por cima das nossas cabeças se estavam a juntar umas nuvens negras. Quando lá chegámos veio a chuva.

A entrada na cidade fez-se com o bocado de trânsito. Auschwitz será hoje em dia uma cidade normal como outra qualquer do país.

Tínhamos divido a nossa visita em duas partes, como tem que ser. E para isso é conveniente situar histórica e geograficamente o complexo de Auschwitz.

Quando se fala no Campo de Concentração Auschwitz-Birkenau (ou simplesmente Auschwitz), na verdade está-se a designar não um mas três campos de concentração em volta da cidade polaca de Oświęcim (pronunciado auch-vien-chim) ou em alemão Auschwitz. O complexo era constituído pelo campo Auschwitz I (o campo original), Auschwitz II – Birkenau (campo de extermínio), Auschwitz III – Monowitz (campo de trabalho) e 45 sub-campos satélites nos arredores. O primeiro campo está localizado na cidade de Auschwitz e o segundo foi edificado em cima da vila de Birkenau (a 2 quilómetros do primeiro). No terceiro, construído na vila de Monowitz (a 5 quilómetros do primeiro) operava uma fábrica de químicos onde os presos eram obrigados a trabalhar. Actualmente apenas o primeiro e segundo (os mais importantes) permanecem.

Ambos são visitáveis sem qualquer custo. No entanto apenas no segundo a entrada é livre a qualquer hora do dia. Os campos por esta altura estão abertos desde as 8h00 às 19h00, no entanto o acesso ao primeiro é restrito entre as 10h00 e 15h00 para visitas em grupo com guia (essas sim, pagas).

Assim optámos por fazer a visita por nossa conta, começando primeiro por Birkenau e depois Auschwitz com almoço pelo meio.

Mapa do complexo Auschwitz II / Birkenau - Birkenau, Polónia

Já caía água moderadamente quando fomos espreitar o Campo II.

O estacionamento não é permitido na estrada que passa à frente do campo, como nos informou uma espécie de vigilante que ali estava. Isto porque existe um espaço próprio pago a 100 metros dali. Sinceramente, não me choca. Até porque o acesso ao campo é gratuito e estas coisas têm que ser financiadas. Nada melhor do que fazê-lo fornecendo um serviço de estacionamento em parque fechado… Mas já tínhamos decidido fugir à chuva indo almoçar antes da visita, que andar por ali molhado também não é a melhor coisa. Parámos as motas junto à entrada do campo e o fulano continuava a gesticular que tínhamos de estacionar lá atrás. Eu fiz-lhe sinal que estava bem, mas que queríamos uma foto. E pedi-lhe se a podia tirar. Sem problemas e com um sorriso acedeu, passei-lhe a máquina para a mão e ora aqui está ela!

À beira de Auschwitz II - Birkenau, Polónia

Agradeci e fomos à nossa vida. Voltámos para o centro e parámos num pequeno centro comercial que ali havia. Ainda era um pouco cedo para o almoço, nada melhor que despachá-lo num restaurante fast-food qualquer. As motas ficavam estacionadas no parque subterrâneo o que também vinha a calhar pois livravam-se de ficar à chuva... Já no centro comercial, a variedade não era muita e optámos pelo “Kentucko”… Frangas polacas para todos se faz favor… Fazer o pedido foi pacífico, a miúda ao balcão desenrascava-se bem no inglês.

E melhor não poderia ser! O tempo de almoçarmos foi o suficiente para o céu desanuviar… A chuva ainda tinha sido alguma pois quando voltámos à estrada o piso estava bem molhado. Voltámos ao Campo II, e seguimos para o estacionamento. Aí foi-nos dito que bastaria um bilhete para as três motas, o que implicava também fazer uma entrada sincronizada no pórtico… Pouco depois vimos um grupo de umas dez motas (italianos ou romenos, já não me recordo) a entrar pelo passeio borrifando-se totalmente para pagamentos e barreiras.

Francamente não estou a ver que alguns cêntimos a cada um fizesse assim tanta diferença! É uma questão de civismo e quanto a isso não há meio-termo, ou se tem ou não se tem.

Deixámos os capacetes e blusões no edifício de apoio ao parque, que também serve de loja de lembranças, e seguimos para a entrada do Campo.

De fora a primeira impressão marcante que fica é a do edifício que servia de portaria e torre de vigia.

Entrada e torre de vigia - Birkenau, Polónia

Entrámos pela lateral onde estava um agente identificado como “Polícia do Museu”… Passada a vedação de arame farpado, avista-se logo uma área vasta e ampla.



À primeira vista é difícil perceber a real dimensão do campo, pois a grande maioria das construções estão destruídas. Todo o interior está meticulosamente divido e arrumado em secções, cada uma com a sua função. Aqui se vê de forma óbvia o metodismo característico dos alemães. Este lugar tinha um propósito, eliminar pessoas de forma expedita. E o número estimado de dois milhões de execuções indicia que o faziam muito eficientemente... 



As construções todas edificadas com tijolo burro eram feias, mas seguramente resistentes, práticas e económicas. A maioria dos barracões (e eram muitos) estava em ruínas e pouco mais se via do que uma espécie de chaminé que ainda permanecia. Um ou outro barracão mantinham-se de pé com algum custo, suportados por traves de madeira. Todos eles se encontravam fechados e nada se conseguia ver através das janelas escuras.



Fomos andando Campo adentro, passando pelas várias áreas delimitadas a arame farpado. Havia também algumas torres baixas de madeira, que se supõe (se forem de época) servissem à vigilância dos guardas. 



À excepção dos caminhos de acesso, todo o Campo estava coberto por um extenso manto verde de relva de boa altura. É curioso, achei que este apontamento de vida, conjugado com a belíssima textura de nuvens que estava presente no céu conferia ao espaço alguma “beleza”. Beleza não é provavelmente o termo certo, pois verdadeiramente aqui nada há de belo. No entanto todo este conjunto de cores naturais que teimava enquadrar o tom sombrio e sujo do campo, fazia desconfiar que a natureza estaria a reclamar para si o lugar aos poucos, ficando um sentimento ingénuo de que o planeta estaria provavelmente empenhado em apagar aquela triste memória.

Depois de passar a extensa área de barracões chega-se ao fundo do Campo e chega-se ao pior, os fornos crematórios. É preciso não esquecer o que aqui se fazia, relembro, extermínio em série… E para que a ideia dessa infeliz realidade passe de forma clara e explicita vou de seguida entrar em detalhes e pormenores.

Na Primavera de 1944, Auschwitz II - Birkenau atingiu o pico do seu propósito, conseguindo alcançar cerca de 4500 execuções por dia. Esta ordem de valores obrigava a uma eficiente e meticulosa operacionalização deste macabro processo. Tal era conseguido através de uns edifícios preparados para esse fim denominados por Crematórios. Quatro unidades deste tipo foram construídas neste Campo. Segundo as autoridades germânicas dois dos crematórios (Kremas II e III) tinham a capacidade de queimar 1440 corpos ao dia cada um, e os outros dois (Kremas IV e V), 768 cada um. No entanto os testemunhos de alguns prisioneiros indicam que as capacidades eram superiores. Estes números assustadores são bem representativos do inferno que aqui se vivia.

Planta do Crematório III - Birkenau, Polónia

Embora o propósito inicial da unidade II fosse a de servir de morgue, estes edifícios não eram apenas fornalhas que consumiam corpos, na verdade eram unidades completas de processamento para assassínio em massa. Os prisioneiros entravam nos Crematórios para uma câmara no subsolo suficientemente ampla. Aí era-lhes pedido que se despissem, sob a suposta necessidade de tomarem banho. Era-lhes dada ordem para que deixassem os seus pertences bem arrumados para que logo depois do banho os pudessem reaver. Despidos de roupa e dignidade, transitavam para outra câmara onde no tecto estavam instalados chuveiros. Mas o que se seguia não era um banho. Esta câmara disfarçada de balneário era na verdade a câmara de gás onde depois de fechados era libertado o gás letal. A substância utilizada era o cianeto de hidrogénio obtido a partir de um pesticida conhecido por Zylkon B (ou Ciclone B). Até à data este pesticida era utilizado na fumigação e limpeza de bens e áreas. Após algumas experiências os oficiais das SS descobriram que em contacto com água e calor este pesticida libertava cianeto de hidrogénio, um gás venoso que interfere na respiração celular. A morte num ser humano de 68 quilograma ocorre ao cabo de 2 minutos com a inalação de 70 miligrama deste gás. Após o extermínio a câmara de gás era arejada, seguindo-se o processamento dos cadáveres. Ainda antes dos corpos serem deitados às fornalhas, como lixo, para serem incinerados, retirava-se o ouro nos dentes. O cabelo já lhes tinha sido rapado à chegada ao campo para ser despachado para a indústria têxtil germânica. Finalmente, as cinzas recolhidas das fornalhas eram despejadas logo ali, no exterior do crematório.

Crematório III - Birkenau, Polónia

Com a chegada do fim da Guerra, no final de 1944 foi ordenado o desmantelamento dos crematórios e em Janeiro de 1945 as SS rebentam com o que ainda restava. Após o fim da Guerra em 1945 os produtores do Zylkon B foram submetidos a julgamento e executados por fornecerem em consciência o pesticida para extermínio de seres humanos. Só para Auschwitz estima-se que tenham sido entregues 26,8 toneladas de Zylkon B entre 1942 e 1944.

Ruínas do Crematório II (frente) - Burkenau, Polónia

Ruínas do Crematório II (câmara de entrada (C)) - Birkenau, Polónia

Local onde eram despejadas as cinzas (J) - Birkenau, Polónia

O que se pode ver hoje em dia deverá ser muito parecido com o que ficou no dia em que os nazis abandonaram o campo. Aliás esta é impressão geral com que fiquei de todo o lugar. Tudo está minimamente preservado, parece existir a preocupação lógica de não adulterar a memória e de mostrar as coisas ao mundo tal como aconteceram. Tudo o que foi reconstruído está assinalado e identificado e é de facto muito pouco. Dos Crematórios pouco mais resta do que um amontoado de destroços, sujo e podre. Mesmo assim e recorrendo à explicação dos placares informativos conseguimos entender o que está à nossa frente. As fornalhas foram removidas mas é ainda perceptível a entrada pela qual os prisioneiros seguiam para a câmara de entrada no subsolo e onde se despiam e deixavam as suas roupas antes de enfrentar a morte. À frente das ruínas está uma placa que nos recorda que por ali foram lançadas as cinzas de milhares de pessoas.

Entres os Crematórios está instalado o monumento ao Holocausto. Uma escultura suja, amontoada, com ar caótico.

Monumento ao Holocausto - Birkenau, Polónia

O aspecto é estranho mas creio que em termos de mensagem não poderia estar mais adequado.



Os prisioneiros eram trazidos por linha férrea, amontoados em vagões diminutos.



Esta linha que passa pelo edifício da portaria segue campo dentro até ao fundo, onde estão os Crematórios. Esta é provavelmente a imagem mais conhecida deste campo. Existem milhares de fotos daqui.





Dentro de Auschwitz existe um cais do lado direito que acompanha a linha. Era nesse local que eram descarregadas as pessoas dos vagões. Mais ou menos a meio é possível ver uma foto de época e respectiva informação.



Logo aqui à chegada, precisamente neste lugar era feita a triagem. Os guardas das SS separavam a dedo os mais fracos, sendo o destino destes a execução imediata. Dali, outros seguiam a pé até aos Crematórios, onde os aguardava o processo de extermínio descrito acima. Tudo decidido ali, fria e metodicamente sem qualquer respeito pela vida... Conseguir enquadrar o lugar onde me encontrava com aquela foto onde se via centenas de pessoas a serem seleccionadas para a morte deu-me, não um clique, mas sim uma pancada no cérebro. Durante alguns minutos comecei a imaginar os infelizes a caminhar penosamente por aquele cais sem desconfiar o que os esperava. E com isto, tenho de confessar, fui-me abaixo... Por muito que um tipo se distancie ou ande por aqui com o espírito de turista é difícil encaixar todo este nível de eficiente perversidade, crueldade, frieza e sadismo. A guerra é dura, combate-se, morre-se, há destruição e vítimas de parte-a-parte... Mas nada disto tem a ver com guerra… Isto é apenas ódio, escuridão. Um ódio doentio dirigido e premeditado. O Mal na sua forma mais pura e abjecta. Aqui se testemunha o que pode suceder quando o extremismo alcança o poder… Todos têm que forçosamente aprender com esta vergonha para a espécie humana, que pensando bem, não está assim tão longe… 70 anos separam-nos do fim da Grande Guerra, aproximadamente uma geração…



Confesso que por esta altura, já sentia um sério desconforto... Mas a visita ainda não estava concluída. Tínhamos ainda o museu no campo original para ver, a cerca de 2 quilómetros daqui. Regressámos ao parque e passámos pela loja onde tinham ficado os capacetes e blusões. A saída do estacionamento foi feita como a entrada, com um só bilhete na mão e as três motas a passar alinhadas sob a cancela.

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