12. Rock, álcool e costeletas

A esplanada tinha gente e o bar estava aberto, apenas a cozinha não estava em funcionamento. A tal fulana que nos recebera estava na palheta com um tipo noutra mesa. E nós fomos atendidos por um individuo todo vestido de negro que não arranhava na perfeição o inglês, mas o suficiente para ter um bom diálogo. Serviu ao Rui e ao Barradas umas cervejas artesanais. Isto porque as especialidades do restaurante eram precisamente cervejas e costeletas de vaca. Ficámos a saber também por ele que o estabelecimento era recente e que a temática da decoração se devia a uma homenagem à Renault 4L ou “Katrca” como é conhecida na Eslovénia. O tipo estava com a corda toda e às tantas já não largava a nossa mesa… Foi dizendo que para nós abria a cozinha e fazia-nos uma boa costeleta. Foi até buscá-la e mostrou-a ainda no saco onde estava a maturar… Pareceu-nos bem, não estávamos com grande paciência para sair dali à procura de jantar… Às tantas a tipa que estava ali sentada desapareceu e ficámos a saber pelo nosso dedicado anfitrião, que o próprio era o marido da outra, e portanto também o co-proprietário da coisa. Estava a arrefecer, e saímos da esplanada para o interior do restaurante ficando a aguardar a tal costeleta.

Foi nessa altura que apareceu uma empregada baixinha, mas com uma pedalada do cacete… Esta falava um inglês perfeito, com sotaque americano e tudo… E acho que foi a partir daqui que as coisas começaram a entrar na quinta dimensão… O gajo estava na cozinha a tratar do nosso osso, mas ia entrando e saindo para nos dar conversa. Ficámos a perceber que tinha nascido na Bósnia e que a suposta mulher dele era uma estilista local conhecida. A empregada ia metendo o bedelho na conversa, e nisto, a pedido do patrão começou a cantar para nós… E raios parta, que surpresa… um vozeirão!

O vozeirão - Liubliana, Eslovénia

O homem arrepiava-se todo a ouvi-la, virava-se para nós e fazia aquele gesto de apontar com o indicador os pêlos do braço como se aquilo lhe fizesse pele de galinha e rematava dizendo “Top, top!!!”…

Ela referiu que era o seu segundo dia de trabalho ali, mas os dois pareciam ter uma cumplicidade de mais tempo. O estilo da cantoria encaixava-se num misto de Rock’n’Roll americano dos anos 50. Apesar de pequenina, conseguia projectar uma voz grave e potente, totalmente afinada, num tom perfeito. Via-se que havia ali vários anos de carreira.

Entretanto chegou a peça de carne, grande e acompanhada de batata frita e salada. Estava delicioso. Mas creio que não conseguimos comer descansados. O Top-top não parava de vir à nossa mesa, enquanto ia pedindo à outra para ir cantando mais não sei o quê…

O osso (Daniel) - Liubliana, Eslovénia

A coisa estava animada e já seriam umas 22h00 quando terminámos. Finalmente o patrão veio sentar-se à nossa mesa com uma garrafa de Schnapps. A ele juntou-se a cantora e quando demos por ela estávamos todos a deitar abaixo um copo de aguardente… E eu incluído para fazer a vontade, que para quem não me conhece é um facto inacreditável – não bebo ponta de álcool!!! Porque simplesmente não tolero o sabor do mesmo.

Schnapps papir! (Rui e Miguel) - Liubliana, Eslovénia

Já tínhamos então mandado todos um shot de Schnapps goela abaixo. A boa disposição continuava, e ele ia-nos falando do sucesso do restaurante e de que tinha outro aberto em Barcelona, e mais outro não sei onde e ainda outro para abrir em não sei que sítio. Mais cantoria, mais música, mais conversa… E eis que entram duas loiras arranjadas até aos dentes, nos seus ‘intas, ou talvez ‘entas… Pá, eu comecei a achar aquilo esquisito… Isto porque ao fim de uns minutos ficámos ali sozinhos com aquelas duas enquanto os outros dois sumiram-se na cozinha…

Sentaram-se à nossa beira e começámos a falar uns com os outros. Uma delas falava mais que a outra. Conversámos sobre um bocado de tudo: da situação actual da Eslovénia, do passado, da nossa viagem, dos lugares por onde íamos passar, das motas, da política, enfim. Uma conversa com nexo e minimamente interessante. A coisa deve ter demorado talvez uma hora… Já era meia-noite e eu comecei a dizer que tínhamos de nos ir deitar, não houvesse ali outras ideias… E tínhamos mesmo que nos enfiar na cama, amanhã estava o dia reservado para descobrir a pé Liubliana.

Levantámo-nos e apareceu logo a pequenina cantadeira para nos fazer a conta... Chiça penico… 100 e picos €!!!... Pimba! Comemos e fomos comidos… Olha agora aguenta, é dividir por três… O Rui pagou certo, eu o Miguel metemos cada um duas notas de 20€… A pequenota enfia o dinheiro todo numa bolsa, agradece-nos e diz-nos que esta certo… Toma! Embrulha! Fomos comidos outra vez!!!... Havia pelo menos 6€ de troco a cada um, e convenhamos que mais de 12€ de gorja é um abuso… Mesmo levando em conta a cantoria, que não pedimos nem requisitámos.

Estava a ficar difícil, pois ela teimava que tínhamos pago certo, e não se conseguia sair dali. Por iniciativa dela foi chamar o patrão à cozinha… Quando ele chegou, voltou a teimar à frente dele que não havia troco a dar… O tipo percebeu do que nos estávamos a queixar. Foi neste momento que comecei a ficar com aquela sensação desconfortável de estar deslocado, num sítio que não conheço, com gente que me é estranha. Obviamente que ela estava a burlar-nos intencionalmente e descaradamente… E perante isto fartei e comecei-me a enervar um bocado. Dei o dinheiro como perdido e disse-lhes claramente: “Olhem lá, fiquem com o dinheirinho, que não quero saber mais desta m…!” O gajo começou a ficar preocupado, com os olhos húmidos e percebeu que não estávamos habituados a este tipo de cena. Depois de andar a pedir a noite toda para fazer uma boa review no Booking, deve ter percebido que isto não o ajudava também. Foi à bolsa e devolveu-nos o troco certo… Depois voltou a referir o Booking, para não falarmos disto… Ficámos sem perceber o papel deste individuo na cena. Recolhemos ao piso superior onde estava o nosso quarto, fechámos bem a porta e sentámo-nos nas camas a reflectir um bocado no que se tinha passado.

A história parecia estranha à brava… Seria o Top-Top mesmo o dono?... E qual o papel da cantadeira nesta história?...

Vamos a factos: nunca vimos o fulano com a suposta proprietária (que seria esposa) e que vimos na esplanada à conversa numa mesa com outro tipo (este sim, seria o marido?) e que saíram do Hotel logo cedo antes do jantar…; disse-nos que era o dono e que o cozinheiro não estava, mas apesar disso assumiu claramente as funções do dito, chegando mesmo a mostrar-nos o interior da cozinha e do frigorífico…; verificava-se um total à vontade da rapariga no seu segundo dia de emprego, desde a cantoria, a beber copos à mesa…; e também a abotoar-se a quase 15€ de troco. Grande cumplicidade entre os dois e sobretudo admiração do fulano pela pequena, o homem ficava sempre com pele de galinha cada vez que ela cantava… Top-Top!

Em suma, ficámos sem saber que esquema era aquele e o papel de cada um deles… Por esta altura começámos a stressar e a imaginar uma série de cenários…

Nesse mesmo momento começámos a notar o som estridente de uma motoreta que andava por ali a rondar... O Barradas meteu a cabeça de fora da janela. Estava um puto em cima de uma motorizada parado logo ali perto do cruzamento onde tínhamos as motas estacionadas. Aparentemente estava na palheta com outro gajo que também por ali parava. E perante este quadro estranho, com receio descemos os três à rua para que se apercebessem da nossa presença. Depois de um serão fora do vulgar estávamos com medo que as surpresas não ficassem por aqui... Pior, que acontecesse alguma às nossas máquinas… Não demorou muito até o miúdo da motoreta a meter a trabalhar e seguir caminho, e o fulano que com ele estava a desaparecer na escuridão. Voltámos ao quarto ainda com menos certezas…

Para além disso, lembrámo-nos que no dia seguinte estaríamos o dia todo fora a passear pela capital. E com que confiança íamos agora deixar a tralha no quarto?

Começámos a avaliar cenários: o Barradas andava à procura de uma esquadra próxima para ir lá deixar as motas… Eu andava a pesquisar um Hotel próximo com recepção 24h… Outra opção ainda seria mudarmos o local das motas para debaixo da nossa janela e fazer turnos de vigia… O Miguel estava com sono e apelou à calma... No final (e já devia passar das 2h da manhã!) depois de todo este bailinho decidimos voltar lá abaixo, mudar as motas de sítio e prendê-las bem juntinhas umas às outras.

Amarradas debaixo da janela - Liubliana, Eslovénia

Dormiu-se de janela entreaberta e creio que o Rui, que estava mais próximo desta, se levantou umas vezes para espreitar lá para baixo.

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